Não deu outra. Tratei da questão no meu texto desta manhã sobre Fidel Castro. Deixem que relembre aqui o segundo parágrafo. Prestem atenção:
“Tenho um pouco de vergonha de muitos da minha profissão. Com as exceções de sempre e de praxe, afirmo de modo categórico: está tomada por pusilânimes, por idiotas, por cretinos incapazes de escolher entre o bem e o mal, entre a democracia e a ditadura, entre a vida e a morte. Já li nesta manhã muita coisa que a imprensa relevante publicou, no Brasil e no mundo, a respeito da morte do ditador. Não fiz a contabilidade, mas creio que 90% dos textos apelam a uma covardia formidável: seu legado seria ambíguo; Fidel nem é o herói de que falam as esquerdas nem o facínora apontado pela direita. Até parece que ele é apenas um objeto ideológico sujeito a interpretações. Não por acaso, esquece-se de abordar, então, o seu legado segundo o ponto de vista da democracia.”
Agora vejam o que diz à Folha o jornalista americano Jon Lee Anderson — transcrevo trecho do texto de Sylvia Colombo:
“A história às vezes joga conosco, com contradições e coincidências. Me parece um espanto que justo no momento em que sobe Donald Trump nos EUA, morra Fidel Castro”, disse à Folha o jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, autor de uma biografia de Che Guevara, e que vem preparando uma outra, do próprio Fidel Castro.
“Desde que ele fez uma alusão à própria morte, ao parlamento, em abril, e se percebeu sua fragilidade, algo mudou na ilha, pois até então era um tabu falar do seu fim”, diz Anderson.
O escritor e investigador, porém, chama a atenção para as interpretações simplistas que estão surgindo no calor da morte do ditador cubano: “Parece que a questão é julgar apenas se foi um vilão ou um herói. Mas creio que é preciso ir além. Fidel foi importante, é preciso entender seu papel histórico no enfrentamento das grandes potências, assim como todos os seus erros”, completa.
Além disso, crê que há uma herança simbólica. “Fidel foi o ícone máximo da ideia de um líder radical, configurou-se como o paradigma do que era um líder rebelde, e que se manteve assim até o final de sua vida.”
(…)
Retomo
Nem preciso dizer que uma análise temperada, assim, com as especiarias da tolerância e da saudável ambiguidade, jamais seria dispensada a um ditador de direita, certo? Embora Fidel tenha matado muitas vezes mais que Pinochet, quantos foram os jornalistas que decidiram, deixem-me ver, ser tolerantes com o sanguinário chileno? Ah, afinal, ele arrumou a economia daquele país, não? O legado pinochetista para a economia do Chile é muitíssimo mais apreciável do que aquele que deixa o ainda mais sanguinário ditador cubano.
Bem, e dizer o quê do paralelo — ou sei lá como chamar — estabelecido por Anderson entre Fidel e Trump? É de uma delinquência intelectual ímpar. Todos sabemos que este senhor fala a um público que considera o presidente eleito dos EUA a besta do Apocalipse. Logo, Fidel vira, por contraste, o anjo anunciador.
Bem, no terreno dos contrastes, cumpriria ainda lembrar: a falha mais grotesca de Trump, até agora (cabelo à parte), é manter conversas um tanto grosseira em vestiários — como se sabe, é um lugar em que as pessoas, habitualmente, debatem Kant e Schopenhauer… Fidel é um assassino em massa.
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