No dia 31 do mês passado, o jornal “Valor Econômico” publicou um artigo da jornalista Maria Cristina Fernandes, intitulado “A Corte de Gilmar e o Estigma dos Erros”. E, sim, havia erros em penca no texto. Para começo de conversa, ancora-se numa pesquisa da FGV que, lamento, pesquisa não é porque as conclusões, é visível, estavam prontas antes mesmo dos dados. Como se dissessem: “Gente, nós temos de fazer uma pesquisa que demonstre que…” E se não demonstrar? Bem, que se faça outra! Até que, bem torturados, os dados confessem o que o inquisidor quer ouvir.
Pedi a Lenio Luiz Streck que escrevesse uma contradita para pulicar no blog. Ex-procurador de Justiça, doutor em direito, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, escritor… Bem, acho que ele tem competência para tanto. E escreve com clareza.
O artigo segue abaixo. Longo, sim! Para ler com calma, reler, debater. Não se trata, que fique claro, de uma “defesa de Gilmar”. Até porque discordâncias de Lenio com o ministro saltam no texto. A leitura de fundo que faz o autor, todos sabem, é também a minha: a imprensa parou de dar bola para o Estado de Direito, para a letra da lei, e tem preferido substituir o rigor da área pela moral ou pela política.
O autor aponta com absoluta razão: se e quando um ministro do Supremo descumpre a lei, mas o faz em favor de vagas influentes de opinião, a heterodoxia ou o erro são aplaudidos. E pobre daquele que decidir seguir o que está escrito, mas na contramão do alarido! Está frito.
Tenho em comum com Lênio o extremo conservadorismo em matéria constitucional e legal. Mais de uma vez o Supremo decidiu contra a letra explícita da Carta. E não se ouviu um pio. Ou alguém reclamou — pergunto eu, não o autor do artigo — quando Roberto Barroso se aproveitou de uma mera concessão de habeas corpus para “legalizar” o aborto até o terceiro mês de gestação? Houve um silêncio sepulcral. Afinal, sabem como é, a tese é “progressista”.
Atenção! Para um conservador em direito, pouco importa se o aborto é ou não aceitável. Ele vai indagar: “O que dizem os códigos legais?” E pronto. Não dizendo nada, não cumpre ao meritíssimo atuar como Parlamento complementar ou alternativo.
Segue o artigo.
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Leio artigo de Maria Cristina Fernandes no Valor Econômico (A Corte de Gilmar e o Estigma dos Erros), em que pega carona em livro publicado pela FGV (Onze Supremos) para criticar o ministro e o Supremo Tribunal Federal. Lembremos que, no Brasil, o STF só existe a partir do que a FGV diz sobre ele. Algo como “Deu no New York Times”. E a jornalista vai nessa. Pega os dados e interpreta trechos de um livro de mais de 300 páginas. Parece nitidamente que a falta de formação jurídica da jornalista prejudicou a matéria. De todo modo, nota-se nitidamente o objetivo: praticar o esporte preferido de parcela da imprensa e da comunidade jurídica: colocar a culpa de tudo o que acontece de ruim no direito e na democracia na conta do velho Supremo Tribunal; especialmente quando a culpa puder ser colocada em um de seus membros.
Críticas ad hoc têm apenas uma vantagem: como pedaços de velcro, pegam fácil em superfícies com maior aderência midiática. Com tantas emoções e estatísticas constantes no livro “Onze Supremos”, da FGV, basta atirar a flecha e depois desenhar o alvo. O crítico nunca erra. Tem para tudo que é gosto. É como a brincadeira que Umberto Eco faz no livro Pêndulo de Foucault. Parafraseio: se eu medir a distância entre a sede do Valor Econômico e a FGV e dividi-la por 3.533 e somar o valor de 3,1416 e, sobre o resultado, aplicar o número de páginas do livro subtraindo um número que tiro da cachola, dá… exatamente o número que eu quiser, porque as variáveis são minhas. Ou seja: sempre dá certo. Demonstrei isso na minha crítica aos números da FGV na questão do foro privilegiado (Conjur de 28.03.2017 – Supremo em Números não pode ser Números Supremos – aqui).
O alvo
A jornalista escolheu como alvo principal, no caso, o Ministro Gilmar. Pelos números, poderia ter escolhido qualquer um. Aleatoriamente, é possível encontrar dezenas ou centenas de decisões, monocráticas ou não, criticáveis. De todos os ministros. Eu mesmo devo ter feito, só no Conjur, mais de 100 colunas apontando erros do STF. Ninguém no STF escapa de ter feito decisões contra legem e assim por diante. Qualquer Corte do mundo comete erros. Por aqui, alguém quer comparar o que se faz no primeiro e no segundo graus com o que se faz no Supremo? O STF é muito, mas muito mais garantidor de direitos que o restante do judiciário. Inclusive já demonstrei que, atualmente, o STF julga mais rápido que parcela considerável dos juízes de primeiro grau e do segundo grau. Com a diferença de que, quando o STF julga, terminou. E quando o primeiro grau julga, o périplo somente inicia. Anos depois chega ao STF. Fiz essa comparação dias atrás na Revista Consultor Jurídico para mostrar que era falaciosa a afirmação de que o foro privilegiado gerava impunidade. Os números utilizados pela FGV para isso não diziam exatamente isso.
Qual é o problema? Simples. Para fazer uma crítica, tanto a FGV como a jornalista deveriam fazer uma coisa prosaica: elaborar conceitos operacionais. O que isto quer dizer? Explico: Se acuso um ministro de ativista, tenho de explicar, minimamente, o que entendo por isso, porque uma coisa é ativismo, outra é judicialização. A primeira sempre é ruim. A segunda, contingencial. Tenho feito essa crítica às críticas que fazem ao Supremo. Digam, primeiro, qual é o critério. Tragam os números e que não sejam ad hoc e tirados de ementas de julgados. Pesquisas devem conter o “fator ácaro”. Mexer com os autos. Cansar os olhos naquelas páginas em PDF que “pulam” na tela. Mas olhar tudo o que o processo contém. Caso contrário, dá vexame, como foi a última da FGV sobre foro privilegiado.
O STF e a sobrecarga
Todos sabemos dos problemas de uma Suprema Corte composta por onze ministros sobrecarregados de processos. Não foram eles que fizeram as leis lhes colocando nos ombros até mesmo a função de julgar habeas corpus de ladrões de galinha e ter que colocar na rua filhos de mães presas que deveriam ter sido liberados pelos juízes de primeiro grau. Quanto mais o primeiro e segundo graus se tornam punitivistas, mais o STF é chamado para conceder habeas corpus. Por vezes, o STF exagera pelo lado contrário, como quando negou a letra da Constituição no caso da presunção da inocência. Mas, neste caso, o que fez a imprensa? Apoiou o “ativismo do STF”. Sim: negar a letra da Constituição é fazer ativismo. Mas pouco se disse sobre isso.
De novo, qual é o problema? Simples. Porque o STF “é bom” quando julga a nosso favor. Ele “é bom” quando julga de acordo com as sereias (a maioria – lembremos sempre de Ulysses e o canto das sereias). Mas, quando se coloca como freio às maiorias, é amaldiçoado. Pois seria justamente quando se coloca como remédio contra as maiorias (inclui-se, na formação da maioria, a imprensa) é que o STF deveria ser elogiado. Mas, não. Aí é que leva paulada. O STF é bom — e a imprensa gosta — quando o decano dá entrevista no shopping sobre um tema em julgamento. Por que “é bom”? Porque o que ele lá disse agradou à maioria. Mas é ruim quando um Ministro diz coisas que desagradam a setores da imprensa. Há ministros que falam todos os dias sobre qualquer assunto. E não recebem críticas. Por quê? Porque o assunto agrada os interlocutores, ouvintes, leitores e telespectadores. Mas, quando o assunto desagrada, vem a frase: juiz só deveria falar nos autos. Concordo, desde que a regra valha para todos. Para todos os ministros, todos os juízes, todos os procuradores da Repúblicas (inclui-se, aí, o power point, se me permitem a ironia).
Como falei, o alvo da jornalista é Gilmar. E elenca decisões por ele dadas. Sou insuspeito nesse quesito “críticas” ao STF. Há quantos anos faço isso, com a diferença de busco ser coerente!? Se pegarmos o “caso Gilmar”, errou no caso da liminar impedindo a posse de Lula. Tão coerente deve ser um crítico que, quando uma juíza impediu Moreira Franco de assumir um ministério, elogiei o STF que derrubou a liminar impeditiva. E assim por diante. Mas minhas críticas e elogios não são ad hoc e nem espiolhadas de um conjunto de centenas de decisões dadas por onze ministros. Se existem Onze Supremos, multiplica-se a possibilidade de erros. E de acertos. Mas, de novo: acerto para quem? O acerto para um pode ser um erro para outra parte.
Critérios
Como evitar críticas ad hoc? Simples: Construindo critérios que servem para todos os julgados. À falta de conceitos operacionais acerca do que, de fato, a jornalista quer(ia) dizer e o que as pesquisas da FGV querem demonstrar, o que se faz é política com os números e com os resultados. Exatamente isso: críticas políticas. Portanto, tudo o que estão falando está fora do direito. Isso pode ser visto com a mira da matéria sobre Gilmar e o IDP, assunto que volta a todo momento. Há milhares de juízes dando aula em cursinhos que nem chegam perto da qualidade do IDP. Que é uma Faculdade e tem programa de Mestrado com docentes respeitabilíssimos. E alunos que publicam trabalhos sérios. Não tenho procuração, mas os professores de lá podem até falar sobre isso. Enfim, trata-se de críticas ad hominem. Isso já está velho. Insisto: Há bom — e farto — material jurídico para criticar o ministro Gilmar e seus colegas (e o STJ etc). Mas isso seria exigir muito dos críticos porque é mais fácil fazer a crítica sob o viés da política. A propósito: ao que sei, ao contrário do que disse a jornalista, a PEC da Bengala (que eleva para 75 anos a aposentadoria do judiciário e do MP) não tem nada a ver com José Serra. E nem com Gilmar.
Sigo. Para dizer que, sendo generoso, pode-se dizer que as críticas se situam no campo de uma pretendida crítica política. Mas não é direito que se trata e tampouco de teoria do direito. Não podemos exigir que a jornalista entenda de direito ou de teorias acerca de como se deve decidir. Aqui poderíamos abrir uma boa discussão com o ministro Gilmar e seus colegas. E com o STJ. Aliás, muito deveríamos discutir decisões do STJ. E dos TRFs. E dos juízes e tribunais que invertem — contra a lei e a Constituição — o ônus da prova em casos de furto e tráfico. Na verdade, acreditaria tanto na jornalista como na FGV se se preocupassem com “efetividades qualitativas nas decisões da Corte” e menos na crítica de decisões escolhidas a dedo que fragilizam este ou aquele ministro. E menos também nas questões pessoais. Há dois corpos do rei. A modernidade inventou isso. Não deve importar o que o juiz ou o Ministro coma no almoço. Ele deve julgar bem. E disso devemos exigir accountability. Aliás, se olharmos para trás, veremos coisas interessantes como quando do julgamento do mensalão. Os mesmos ministros criticados nos dias atuais eram incensados naquele momento. Claro: estavam decidindo de acordo com o que a torcida queria. O incensado de ontem é o queimado de hoje. E vice-versa.
Gosto que se façam críticas com critérios. Se construirmos critérios, podemos exigi-los inclusive quando se trata de nossos inimigos, claro, se formos honestos na apreciação e não transformamos tudo em uma dicotomia “amigo-inimigo” (político). Por exemplo: um bom critério é não permitir que o direito seja corrigido pela moral na hora da aplicação. Com isso, cada vez que um Ministro faz esse uso corretivo, temos de criticá-lo. Tenho feito isso há anos. Já escrevi mais de cinco mil páginas sobre isso. Mesmo que a decisão seja contra nossa opinião. A imprensa deveria ser a primeira a cultivar esse hábito. Um bom exemplo é o caso Bruno. Marco Aurélio acertou. Mas o que levou de críticas… Mas logo — Gilmar e qualquer outro — serão elogiados em decisões que agradem a maioria. Lembram quando Gilmar denunciou o “estado policial” o quanto de elogios teve? Em termos de torcida e crítica, quem afunda o STF são os mesmos que o fazem flutuar. Meu medo é que nem nisso haja critérios.
Direito não é moral, religião ou política
A maior prova da falta de critérios nas críticas ao STF é a referência à “era Moreira Alves”. A jornalista faz isso. Eu também gosto do ex-ministro. Se muitos hoje se comportassem como ele, o STF poderia caminhar melhor. Todos sabem de meu (forte) conservadorismo em relação à letra da Constituição. Judiciário não faz lei. Cumpre. Mas, por favor: se elogiamos Moreira Alves, vamos ter que ser coerentes e analisar os seus erros. De novo: Moreira Alves interessa aos pesquisadores e à jornalista naquilo que querem, com o gancho de puxar a sardinha para o seu assado. O que sobraria dos votos de muitos ministros se comparados com o perfil de Moreira Alves? Mas isso exigiria coerência na análise. A propósito: se é o STF que tranca inquérito em que houve prisões e que nem sequer resultou em denúncia após 10 anos (aqui), o pau comeria solto. Foi o STJ. E o fez corretamente. Mas fosse o STF, por certo haveria ranger de dentes.
Numa palavra: para fazer críticas consistentes às atuações do judiciário — e especialmente dos Ministros do STF — te(ría)mos que entender que direito não é moral, não é religião, não é política. Claro que o STF também tem de se dar conta disso. O direito se abebera desses elementos quando de sua votação e aprovação. Depois de posto, admite, é claro, interpretações. Mas não admite correções via opiniões pessoais, moralismos de ocasião etc. Se um ou mais ou todos Ministros cometem esse erro, há que se apontar isso. Em todos os momentos. E não só quando o ministro fica bulindo com coisas com as quais não concordamos. Elogios não devem ser ad hoc… Nem as críticas.
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