Falei no post anterior de um radialista formado em direito e que pensa com propriedade — e, sim!, temos várias discordâncias. Agora falo de outro. Thiago Pavinatto, advogado e comentarista multitemático, tem um dos melhores textos do que eu chamaria “nova geração de conservadores”.
É um alento. As diatribes das direitas contra as esquerdas e das esquerdas contra as direitas se manifestam em vastas solidões, num deserto de referências. Quem é do ramo sabe que um texto revela um currículo oculto. Por mais arranjadinho que seja, a ignorância se revela. E não é raro que cheguemos ao fim sem encontrar uma só ideia original ou própria, uma só formulação que não repita chavões.
Dialogar com Pavinatto também é conversar com o que ele leu. E isso está em seu texto. Ele colabora com o blog Estado da Arte, do Estadão.
Pavinatto cria o termo “glossolalítica” para se referir a esses dias em que hordas organizadas nas redes sociais se manifestam sobre política, mas falando “línguas estranhas”.
Segue trecho de sua coluna.
(…)
Glossolalia: este seria o nome da nova atração que, incorporada ao circo da Política e para espanto dos observadores menos ferozes, deixa de ser mero truque de políticos e tônica entre catequistas, seculares ou não, e volta, como em primícias, a ser transe oriundo de truques de discurso de má-fé, imbecilidade ou idiotia; esse inconciliável desentendimento ocorre porque, vale lembrar o pensamento de Eric Hoffer, “pessoas até mesmo decentes, comuns, que fazem o trabalho do país nas cidades e nas terras, são trabalhadas e moldadas pelas minorias dos dois extremos” (Fanatismo e movimentos de massa).
Na glossolalia, ninguém se entende e, não causaria estranheza, nem entende a si próprio.
Por mais que o interlocutor tenha falado com alguma propriedade sobre algum assunto relevante em Política, à direita, reativamente dizem “olha o mimimi!” ao que, à esquerda, automaticamente respondem “golpistas!”.
O transe não cessa.
Ficam apenas atirando uns contra os outros as conotações de “coxinha” e “mortadela”.
Todavia, os debatedores falam o mesmo idioma. Falam o que querem e entendem, quando ouvem e quando entendem, aquilo que quiserem entender.
Eis a glossolalítica: posto que glossolalia, além de significar fenômeno religioso, também é termo correto na seara médica para designar um distúrbio de linguagem que acomete alguns doentes mentais, a glossolalítica é uma nova espécie por se tratar de transe politicostal no qual as pessoas xucras (em sentido figurado), políticos ou eleitores, mesmo falando o mesmo idioma, entretanto tocados pelas artimanhas do Espírito Nada Santo de Porco, são incapazes de compreender umas às outras, principalmente, mas não exclusivamente, quando estão em lados ideológicos opostos.
Perto deles, a cadela Baleia se faria entender com maior facilidade.
A glossolalítica, que seria capaz de refundar os complexos argumentos linguísticos do filósofo Herbert L. A. Hart nos prados e campinas nada verdejantes do Direito, atinge em cheio a máxima rodrigueana de que “a plateia só é respeitosa quando não está a entender nada”, posto que é justamente quando nada entende ou não quer entender que ela enviesa o diálogo irremediavelmente.
Dia desses, um famoso historiador brasileiro sentiu na pele a fúria da glossolalítica logo após publicar uma foto sua na companhia do Sumo Magistrado. Acusado de antônimos, frente às reações bestiais de muitos dos seus seguidores virtuais, disse que, assustado, nunca viu tamanho ódio em rede. Uma pena ele não ter se atentado à advertência de Manuel Castells sobre a ferocidade do povo brasileiro conectado, cuja simpatia, disse o respeitado sociólogo espanhol, “é um mito”.
O fenômeno, no entanto, não é exclusivo nosso. A glossolalítica é cada vez mais gritante, literalmente, ao redor do globo.
(…)
Arquivado em:Brasil, Política
from Reinaldo Azevedo – VEJA.com http://ift.tt/2n53h46
via IFTTT
Nenhum comentário:
Postar um comentário