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quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

“Memória de Ferreira Gullar”, por Marcos Lisboa

Prometi aos meus leitores um texto mais alentado, de própria lavra, sobre Ferreira Gullar. Os dias andam bicudos. As noites andam velozes. Felizmente, posso cumprir a promessa, mas por intermédio da pena de um querido amigo, Marcos Lisboa, que me dispenso de apresentar. É tão fácil saber quem é ele.

Marcos é uma das pessoas mais cultas que conheço no sentido mesmo da palavra: cultivada. Economista brilhante, pensador da economia antes de tudo, é mm grande leitor de literatura.

Em dias de terra devastada, é daqueles amigos que enchem seu coração de esperança.

Uma esperança sempre magra e severa, como diria Musil, de que ele gosta tanto.

Leiam “Memória de Ferreira Gullar”, por Marcos Lisboa.

*
Morreu Ferreira Gullar. Ferreira Gullar morreu.
Temos que repetir interminavelmente:
morreu Ferreira Gullar.

Minha geração conviveu com a sua poesia inesperada;
a ruptura herdada do verso livre.

Onde, em João Cabral, havia palavras secas ou silêncio incômodo,
no jovem Gullar havia a escolha pelo contraste.

Morreu Ferreira Gullar.

A sua poesia flui como a língua estrangeira de um país provisoriamente vizinho.
Reconhecemos as palavras, a melodia.
Sabemos dos temas.
Mas há o estranhamento com as sutilezas.

As linhas de Ferreira Gullar revelam intimidade com a delicadeza e a ruptura.
A sua poesia tem a cadência da respiração
que permite reconhecer quem se senta à poltrona,
oculto pela geometria do corredor.

Morreu Ferreira Gullar.
Com ele se vai uma vida que acompanhamos com a cerimônia das visitas ilustres.

Sabemos do filho
e da estética que combinava palavras simples, linhas retas e cores primárias.
A delicadeza do concreto turva o resto como a bruma do mar azul.

A simplicidade da linguagem de Gullar
surpreende pela sutileza dos contrastes bruscos.
Alquimia.

A personalidade se impõe na disposição de poucos elementos,
que revelam suas perdas,
suas inquietudes;
uma vida ansiosa por registrar a sua memória.

Há tanto o que admirar em Ferreira Gullar:
a ruptura íntima e estranha da sua poesia,
que às vezes surpreende com um riso de menino.

E há o mau humor do jovem que se descobriu velho,
profundamente irritado com os novos que aparentam desconhecer a ordem da revolução.

A inevitabilidade da história transformou a ruptura em reação.
Ao menos, foi preservada a indignação ética,
que não parece escolha; apenas vocação.
A ética, em Gullar, parece tão inevitável quanto seu perfil.

De longe, parecia que, às vezes, inesperadamente, a divergência brusca surpreendia com um riso aberto.

Uma parte analítica e crítica, outra parte lambuzada pela sapequeza de menino. Quem seria o tradutor?

Talvez já não houvesse mais a mesma a sutileza estranha das palavras.
A poesia revelava as verrugas da idade, polidas pela erosão do aprendizado.
A prosa, por vezes irritada, contrastava com a aceitação serena da memória.

Morreu Ferreira Gullar.
E, com ele, morre um país.
Frase instintiva, mas balão de ar.

Morreu Ferreira Gullar.
Morreu, apenas, Ferreira Gullar.
Morreu, sobretudo, Ferreira Gullar.
Ferreira Gullar morreu.


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