Sim, o tema é polêmico e remete à forma como se entende um “direito” no Brasil, que tem sempre um aspecto curioso: ele é visto segundo a ótica de quem recebe um benefício, nunca de quem arca com o custo de sua existência. Explico melhor: garantem-se primeiro os direitos e só se pensa depois de onde sairão os recursos. É do balacobaco!
Chegaram ao Supremo duas demandas. A de uma mulher, do Rio Grande do Norte, que precisa de um tratamento com um remédio caro, que inexiste no SUS. E a de um homem que pede que o Estado importe uma droga que não tem ainda registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Num tema assim, é muito fácil tomar uma decisão simples e errada, como fez o ministro Marco Aurélio, relator, que já havia votado, de forma razoável, que o Estado tem de arcar com o custo, não importa qual, desde que o remédio esteja registrado na Anvisa. O julgamento havia sido suspenso diante de um pedido de vista de Roberto Barroso.
Ao ser retomado, Marco Aurélio resolveu rever seu próprio voto e mandou bala: pouco importa o remédio, tenha ou não o registro da Anvisa, tem de ser fornecido pelo Estado desde que devidamente regulado em seu país de origem. O paciente só precisará demonstrar que não pode contar com a solidariedade familiar para arcar com o custo do tratamento.
Barroso votou, basicamente, segundo as restrições propostas pelo Ministério Público Federal: é preciso haver um critério, e não se pode garantir tudo a todos. Assim, a droga tem de estar disponível no SUS, e o paciente tem de provar que dele necessita.
Caso não esteja, o fornecimento deve se dar segundo critérios:
– comprovação de que o paciente não dispõe de recursos:
– que não haja tratamento semelhante disponível no SUS;
– comprovação de que a droga é eficaz;
– que a União compartilhe o custo do fornecimento;
– e isso vale apenas para remédios com o registro na Anvisa — ou, então, será preciso demonstrar que o órgão demorou mais de um ano para aprová-lo.
Edson Fachin introduziu alguns matizes, mas deu um voto muito próximo do de Marco Aurélio.
Vamos lá
Nós todos podemos — e talvez até devamos — achar que todos os homens têm de ter acesso a tudo o que oferece a tecnologia de ponta, na área da medicina em outras quaisquer, para tornar a nossa vida mais digna. É um fundamento.
Depois é preciso pensar nas possibilidades. O Estado não e um saco sem fundo ou uma mina de dinheiro. É claro que é preciso estabelecer alguns critérios. O voto de Marco Aurélio é um caso clássico de solução simples e errada para um problema difícil. Em ultima instância, ele diz: “Passem no guichê”.
Que o Estado faça um esforço para atender às demandas, sim, mas que se estabeleçam regras, que têm de atender, não há como, primordialmente a uma maioria.
Parece cruel dizer, mas é só realismo: os portadores de doenças raras, que precisam de remédios que nem estão na lista na agência brasileira, têm a alternativa de mobilizar parentes e a sociedade para tentar conseguir o remédio.
O mundo é o Éden?
Essa sociedade só dos direitos, sem que se diga de onde saem os recursos, tem um fundo que é, na verdade, religioso. Parece que o mundo está destinado a ser o Éden, nós todos somos os eleitos, e o Ser Supremo nos alimenta todos os dias com maná. Bem, não é assim que toca a música. Os recursos são limitados para necessidades que, em essência, são ilimitadas.
É fácil jogar tudo nas costas do Grande Pai — no caso, o Estado, não Deus. Quando o país fica cum déficit de R$ 170,5 bilhões, aí se descobre que, então, é preciso manter os juros na casa do baralho; que é preciso cortar gastos, que é preciso fabricar recessão, que é preciso optar pelo desemprego…
“Reinaldo está dizendo que os portadores de doenças raras são os responsáveis pela crise brasileira?” Não! Não está.
Reinaldo está dizendo que não dá, como lembrou Barroso, para garantir tudo a todos. Sim, meus caros, as pessoas precisam de óculos, de próteses, de palmilhas, de remédios, de transporte, de saúde, de educação, de segurança, de comida, de renda, de camisinha, de pílulas anticoncepcionais, de remédios raros e caros, de felicidade…
O senador Cristovam Buarque (PPS-DF) chegou a sugerir que a nossa Constituição abrigasse o direito à felicidade? Já imaginaram? Seria o fim do amor não-correspondido.
Mas alguém paga por isso.
Quem paga?
O mundo de Marco Aurélio, tudo indica, ainda é aquele em que o Estado tutela a sociedade. Eu prefiro, e não é retórica, um em que a sociedade tutele o Estado.
Ah, sim: Teori Zavascki pediu vista, e o julgamento foi interrompido.
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