Não sou, e não vou entrar agora em minudências, um entusiasta do papa Francisco como personalidade pública e como líder religioso. Mas sou capaz de reconhecer, mesmo quando se trata de alguém que repudio (e está longe de ser o caso), um acerto. E, em entrevista concedida nesta quinta, ele disse a coisa certa sobre o uso de contraceptivos.
Ao falar a jornalistas no avião, no retorno a Roma de sua viagem ao México, o Sumo Pontífice disse que as mulheres sujeitas ao vírus zika podem, sim, usar métodos contraceptivos. Não especificou quais. Que seja mais um passo da Igreja rumo à admissão de que a contracepção é uma imposição da vida moderna, para mulheres e homens, e não agride a dignidade humana.
O papa, obviamente, fez a devida distinção entre método contraceptivo e aborto — e, com efeito, só mesmo a delinquência moral e intelectual poderia confundir esses dois domínios.
Não é a primeira vez que um papa deita um olhar compreensivo sobre a questão. Numa longa entrevista convertida em livro, concedida em 2010 ao jornalista alemão Peter Seewald, Bento 16 tratou do assunto e se encarregou de desfazer um mal-entendido provocado pela má-fé, pela burrice e pela militância anticatólica.
Há a versão em português da obra, intitulada “Luz do Mundo”, publicado pela Paulinas. Ali, o agora papa e3mérito, considerado mais conservador em doutrina, admite claramente o uso da camisinha. O que ele destaca, e está inteiramente certo, é que só isso não basta. Na entrevista, afirma com todas as letras:
“É uma questão de fato: as pessoas podem conseguir camisinha quando quiserem. Mas isso só prova que ela, por si, não resolve o problema. Mais precisa ser feito.”
Fazendo, então, alusão a um programa em curso em Uganda, que contribuiu para que os casos de AIDS tivessem uma queda expressiva, afirmou Bento 16: “A própria esfera laica criou a chamada ‘Teoria ABC”: Abstinence (abstinence), Be Faithful (Seja Fiel), Condom (camisinha).”
Bento 16 então destacou que o preservativo era o último recurso. E disse que a simples distribuição de camisinha concorre para a banalização do sexo — e, portanto a exposição a maior risco. Restava, assim, evidente que Bento 16 já não considerava o uso de preservativos um grande mal.
A origem da confusão tinha sido uma visita sua a Camarões, em 2009, país particularmente assolado pela AIDS e que contava com um agressivo programa de distribuição de camisinhas. Ele disse, então, que apenas essa medida não resolveria a questão e poderia até agravá-la. Os grupos militantes quiseram atribuir a ele o que não disse.
O papa não havia dito que a camisinha não era um método seguro para impedir que o vírus passasse de um corpo para outro. Foi preciso que Edward Green, um dos maiores especialistas do mundo no assunto, viesse a público para dizer que Bento 16 estava certo. Afirmou: “O que nós vemos de fato é uma associação entre o crescimento do uso da camisinha e um aumento da AIDS. Não sabemos todas as razões. Em parte, isso pode acontecer por causa do que chamamos ‘risco compensação’: quando alguém usa uma tecnologia de redução de risco, frequentemente perde o benefício [dessa redução] correndo mais riscos do que aquele que não a usa”.
Green é medico, antropólogo e diretor do Projeto de Investigação e Prevenção da AIDS (APRP, na sigla em inglês), do Centro de Estudos sobre População e Desenvolvimento de Harvard.
Por que faço essa longa digressão sobre a polêmica envolvendo a afirmação de Bento 16? Para chamar a atenção para o fato de que há muito a camisinha ou métodos contraceptivos deixaram de ser um tabu para a Igreja. A fala de Francisco é bem-vinda, mas não tem o ineditismo que tentam lhe emprestar.
É fato, no entanto, que a Igreja continuará a combater o que o papa emérito chama na entrevista de “banalização da sexualidade” e que vai insistir em que as escolhas morais que precedem a camisinha são mais importantes do que ela própria — e são mesmo; basta pensar com um mínimo de racionalidade.
Volto a Francisco. Num momento da entrevista, ele fala de um dever ético dos cristãos: o mal menor. Ainda que a camisinha, então, possa ser um sinal dessa banalização que a Igreja condena, é evidente que ela é preferível ao aborto — este, sim, ele deixa claro, um pecado.
A Igreja e os métodos contraceptivos não formam um binômio que se discute nessa esfera. Trata-se apenas de uma orientação de caráter moral, não de uma ofensa àquela que se considera a dignidade divina do homem.
É uma pena que a imprensa contemporânea cubra tão mal as questões religiosas e conheça tão pouco os fundamentos doutrinários das grandes religiões. Muita besteira deixaria de ser dita.
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