Por Lucas Berlanza, publicado no Instituto Liberal
Em edição recente da TVeja, o historiador Marco Antônio Villa causou polêmica ao comentar a presença, nas manifestações de rua que abalaram o Brasil, de referências ao escritor, jornalista e filósofo Olavo de Carvalho; sem mencionar seu nome, Villa disse que o “astrólogo” que publica “vídeos no Youtube” é “fascista”, representa a “extremíssima direita”, e o fato de ser “antipetista” não faz com que o próprio Villa se sinta à vontade em ser associado a ele. Dada a popularidade de Olavo, naturalmente o burburinho foi grande e tomaram-se as mais variadas posições, a favor ou contra as declarações do historiador e membro da equipe de Veja. Cada um pode pensar a respeito como preferir, inclusive o próprio – que tem direito, diga-se de passagem, de aprovar ou reprovar, parcial ou totalmente, a obra de qualquer um – embora particularmente eu considere as acusações um tanto gratuitas, para dizer o mínimo. No entanto, acredito que o fato de Olavo ter sido mencionado ofuscou um pouco outra coisa que Villa disse na mesma oportunidade, reforçando um tipo de discurso que ele já vinha apresentando em outros momentos, e que me parece um problema mais decisivo e abrangente.
Villa afirmou ser um absurdo dizer que o PT é “comunista”, porque este se “associa ao grande capital”. Segundo Villa, o “comunismo” acabou com a queda da União Soviética, existindo apenas onde houver total “socialização dos meios de produção”, isto é, onde o Estado controlar absolutamente toda a produção, inexistindo mesmo qualquer resquício de economia de mercado, e não havendo a noção de propriedade. Como o modelo brasileiro envolve a associação do poder público a grandes empresários, os “amigos do rei”, beneficiados e protegidos em um ambiente de fortíssima restrição ao liberalismo econômico, realmente ele não se enquadra nessa descrição. Tampouco os modelos vizinhos, como o venezuelano e o argentino; a propriedade privada não está totalmente abolida, conquanto esteja aí submetida a pesadas restrições quanto à liberdade de uso e manuseio. Perguntamo-nos, entretanto, em que lugar ou em que momento da História, esse “comunismo” de que fala Marco Antônio Villa realmente existiu. Já sabemos, desde a Nova Política Econômica de Lênin até a “perestroika” dos últimos anos soviéticos, que em nenhum momento, nem sequer na nação-ícone no que diz respeito à aplicação da ideologia marxista-leninista, essa estatização perfeita e absoluta se fez presente. E não se fez porque é impossível, como os economistas liberais, em especial os austríacos – com sua análise do problema do cálculo econômico sem os parâmetros fornecidos pelo mercado -, já sustentaram. Qualquer sociedade que intentar a implantação de um sistema socialista será, na prática, uma forma mais ou menos extremada de “capitalismo de Estado”. Nada disso encontra eco nas declarações de Villa, não obstante ele seja um historiador, de quem se esperaria certo conhecimento a respeito; noutras vezes, por exemplo, em palestra no dia 28 de novembro do ano passado, ele disse com todas as letras que o PT é um “partido de direita”, devido a essa, repetimos, “associação com o grande capital”, e menosprezou a importância do Foro de São Paulo, chegando a dizer que “ali não é mais esquerda”.
Villa diz tudo isso, não obstante reconheça, também por diversas vezes, que o PT tem um “projeto criminoso de poder”, construído com base em uma “corrupção sistemática” para promover um intenso “aparelhamento de Estado”. Avaliemos; é um mérito, sem dúvida, reconhecer a excepcionalidade do esquema petista, e apontar a gravidade de suas iniciativas. Não há dúvidas de que estamos diante de uma aberração de viés totalitário que gostaria de se perpetuar no governo a qualquer custo, sem entraves morais quanto aos métodos a serem aplicados para tal propósito. No entanto, o que o raciocínio de Villa faz é esvaziar esse projeto de qualquer conteúdo ideológico, é menosprezar a importância da esfera ideológica – de retórica e constituição francamente socialistas, francamente ancoradas no que se convencionou chamar de “esquerda” – na sustentação da “liga” de suporte desse sistema em prática. Há aqueles que vão além; sem reconhecer a excepcionalidade histórica do projeto petista, consideram que toda a política brasileira é conduzida apenas por fisiologismo e troca de favores, sendo todos igualmente corruptos e dispostos a abdicar de suas coerências ideológicas pelos interesses temporais. O PT não seria de esquerda, nem de direita, nem socialista, nem liberal, nem conservador, apenas corrupto – como o seriam, aliás, todos os outros. Como argumento, apontam a necessidade de coalizões, em que lideranças como Lula e Sarney acabam por participar de um mesmo governo.
Vamos por partes. Primeiramente, reconhecendo que esse fisiologismo, esse descompromisso com princípios, toma parte em grande medida em nosso cotidiano político, sim; as tentativas de fundir PTB e DEM são a prova mais contundente disso. Contudo, por mais semelhanças que tenham, não consigo considerar os sociais democratas e sociais liberais do PSDB exatamente iguais aos bolivarianos do PT, nem equiparar um Ronaldo Caiado a uma Luciana Genro. Ainda que diluída, sem uma representação generalizada e consistente na esfera partidária, a diferença ideológica existe e movimenta discussões a respeito de pautas públicas a serem implementadas. Essa nos parece uma realidade inconteste. Longe estamos, porém, do ideal; a representação de pensamentos mais liberais ou conservadores é parca e mal sistematizada, mal estabelecida. Isso pode estar mudando com o recente crescimento desse tipo de concepção sócio-política no país, especialmente entre as juventudes, mas ainda não é a realidade na política prática. Durante muito tempo, os pensamentos ditos de esquerda se tornaram amplamente hegemônicos no âmbito cultural, fornecendo uma base discursiva para as atitudes dos políticos e partidos considerados de esquerda, que a empregam para chegar aos seus fins – que são, de fato, atingir e agarrar o poder. Tiveram – e ainda têm – a massiva penetração nas universidades, em veículos de comunicação e, até este ano, nas ruas (onde já sentem cair significativamente o seu poder).
Mas aí é que está; o PT e os aliados do Foro de São Paulo – uma entidade que, depois de criada em 1990, viu, num sucesso difícil de menosprezar, seus partidos-membros tomarem a liderança em uma grande parte dos países do continente, atribuindo, eles mesmos, importância a essa organização comum de discussão e orquestração de programas para chegar a esse ponto – atingiram o governo, procurando comprometer as estruturas constitucionais e representativas, com base em uma retórica ideológica bem definida. Pelo simples fato de estarem eles organizados no Foro, têm, em especial destaque para o nosso caso, uma política externa demasiado ideológica. Eles não falam em “valores ocidentais”, em “liberdades de mercado” ou “responsabilidades individuais”; falam em “combate ao imperialismo americano” (leia-se: criação da “Pátria Grande”), em “democratização da mídia” (leia-se: censura), em “justiça social e redistribuição, democratização das riquezas” (leiam-se : políticas sociais para instrumentalizar as faixas com menos recursos a fim de se sustentarem no poder, restrições ao empresariado, restrições ao comércio, forte controle e intensa regulação). Ora, o que se tem aí é um nítido discurso ideológico, com uma matriz muito clara à esquerda (e uma esquerda com quase nenhuma moderação), que sedimenta e fortalece pautas práticas a serem apresentadas, numa tentativa de impô-las aos países que governam – com maior ou menor sucesso. No Brasil, os “fisiológicos” do PMDB tiveram rusgas com o PT, seu aliado pragmático – no mesmo sistema de coalização anteriormente mencionado -, por bloquearem algumas dessas pautas que são, frisemos, claramente de orientação ideológica e, sim, frisemos também, fortalecem aquele “projeto de poder” via “corrupção sistemática” para “aparelhamento do Estado” que Villa concorda existir. Isso mostra, aliás, que ambas as legendas, embora envolvidas em escândalos de corrupção, não se equivalem, como alguns querem fazer crer.
Parece-nos evidente o erro de querer ver uma coisa separada da outra. A construção de narrativas, ancoradas em agendas ideológicas esquematicamente insufladas no conteúdo cultural de uma sociedade, é fundamental para solidificar esses projetos de poder e dificultar o combate a eles. Discursos como o de Villa criminalizam a entidade concreta “PT”, mas, além de depreciar sutilmente o próprio capitalismo, poupam esse conteúdo ideológico – esquerdista – das críticas, como se ele devesse ficar numa posição imaculada, imune e passando por completamente inocente. Esse esquerdismo irracional acaba ficando protegido, facilitando o trabalho de quem deseje, uma vez caia o edifício petista, manter o país nas teias do subdesenvolvimento, começando mais um ciclo de perpetuação de poder e mantendo a hegemonia, a partir do mesmo discurso – mudando-se apenas os nomes. Uma demonstração prática disso é que, para posar de “moderado”, Villa ingenuamente – quero crer – ataca o PT com a mesma argumentação, vejam só, do PSOL, torpedeando o maldito “grande capital”. É o tipo de oposição que a esquerda mais repulsiva pediu ao Santo Marx!
Considero grave erro estratégico procurar entender a política esvaziada de seu componente simbólico e ideológico. Isso seria um tiro no pé, e seria deixar de combater o adversário em uma esfera fundamental, em que não se estaria oferecendo a alternativa imperiosa para sedimentar uma reação contrária. Se uma oposição realmente calcada em princípios e valores não tomar a parte que cabe a ela nessa disputa, não compreender essa necessidade e preferir ver apenas o partido hoje no poder como oponente, estaremos nos arriscando a assistir a uma sucessão de “proto-caudilhos” socialistas no poder, que sempre terão todas as ferramentas na própria sociedade a seu favor, e nunca daremos o passo adiante que a sanidade política nacional tanto exige.
Nota do blog: alguns leitores já tinham me pedido para comentar sobre essa “birra” entre a direita, e eu vinha evitando, pois acho que tudo que não precisamos agora é de um racha entre os antipetistas. Soube que Olavo até me citou esses dias, dizendo que eu também já o chamei de “embusteiro” e depois reconheci que “paguei mico”. Eu reconheci alguns erros sim, mas continuo condenando a postura de Olavo em vários aspectos, por achar que ele é um desperdício de intelecto, principalmente quando se coloca a “debater” com qualquer um e parte logo para os xingamentos, algo inadequado num filósofo, e também por julgar que há, entre seus muitos seguidores, certo clima de seita sob um guru infalível, algo inaceitável para um bom mestre. A própria reação de muitos, acusando Villa de “socialista” ou “vendido”, demonstra isso. Villa errou nesse caso em particular, em minha opinião, mas não é um “vendido”, tampouco um “agente da esquerda”. Acho que ele apenas tenta se distanciar de uma direita tida como mais extremista ou caricata, até mesmo por esse tipo de postura, e nesse afã falou bobagem, levantou bola desnecessária para o inimigo, e deveria pedir desculpas a Olavo. Dito isso, trata-se de um historiador sério e um grande combatente do petismo, que merece todo nosso apoio e respeito. Olavo, por seu lado, deveria se tocar que já teve boa parte de seu prestígio resgatado, que tem muito conhecimento e que poderia colocá-lo a serviço da causa conservadora ou antipetista (não são sinônimos) de forma mais inteligente, em vez de sair xingando qualquer um que dele discorda e fomentando, de certa forma, esse clima de briga. Olavo parece viciado em polêmica, mas a direita precisa, hoje mais do que nunca, de união e agregação. É, inclusive, o que me levou a reconhecer meus erros em relação ao próprio Olavo…
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